Antes de deixar o segundo capítulo da história verídica que conta a experiência de um paciente psiquiátrico no hospício, no hospital psiquiátrico, devo dizer que me chamaram no
PROJAC, na Globo, maior rede de televisão do Brasil. Me chamaram para contar minha "história de superação".
Acho que não preciso dizer que eu fiquei sem saber o que dizer, já que não tenho nenhuma história de superação. Daí que chegou um momento que eu fiquei parado com cara de bobo sem saber o que dizer.
Na verdade o que eu tenho é uma HISTÓRIA DE OBSERVAÇÃO, ou seja eu VI uma história triste, uma forma de vida desoladora. Tive a tristeza de ver grande indiferença. O que eu vi é realmente fantástico, no sentido negativo, infelizmente. Pessoas vivendo como bichos dentro dos hospícios que são chamados de hospitais psiquiátricos. Na verdade bem pior do que bichos.
Mas, infelizmente, as pessoas não estão muito interessadas em saber o que realmente acontece com as pessoas submetidas a essas formas de tratamento. O que eu vi não interessaria a Rede Globo. Infelizmente as pessoas têm ignorado a história do paciente psiquiátrico no hospício. E eu espero ajudar a mudar isso.
Ao ler a história de Austregésilo Carrano, conhecido ex-paciente psiquiátrico, eu pensei "Carrano, você não viu nada".
E naturalmente eu não tive nenhuma grande superação. Nem sofri muito. Não comparado ao sofrimento que eu vi. Pessoas reduzidas a bichos.
A triste dor dos Pacientes Psiquiátricos no hospício
Pacientes psiquiátricos comendo lixo, e o que é pior, num lugar onde havia comida e não havia necessidade de se comer lixo.
Enfermeiros sentindo prazer em amarrar pessoas. Pessoas acostumadas a ser amarradas, chegando ao ponto de pedir para ser amarradas, e os enfermeiros, viciados em amarrar, amarravam com prazer.
Nem vou falar das agressões por parte de enfermeiros e auxiliares, já que tal agressões são esperadas, já que tais enfermeiros e auxiliares não sabiam como lidar com pacientes psiquiátricos, e infelizmente ainda não sabem, mas espero que isso mude.
Pessoas que nunca saíam do delírio sofrendo abuso sexual da parte dos próprios companheiros de internação. Pacientes psiquiátricos lúcidos que eram praticamente estuprados.
Com certeza eu vi pessoas se cagando e se mijando como Carrano descreveu eu seu livro Canto dos Malditos, mas comparado a outras coisa isso não era tão grave.
Como Carrano descreveu em seu livro, eu vi pessoas brigando por cigarro, como se suas vidas dependessem disso, mas isso, infelizmente eu continuo vendo nos CAPS.
Não ignore o sofrimento da doença mental
Com todo respeito a Carrano, eu vi pessoas passando por sofrimentos bem piores do que o tratamento de choque que ele descreve tanto no livro. Eletrochoque é considerado tratamento (ainda que controverso), pessoas comendo lixo enquanto deliram no hospício, não é. Ou pior: pessoas comendo lixo no hospício quando NÃO estão delirando.
E não pense que só porque a pessoa está perdida em alucinações a pessoa não sofre. Não seja indiferente para pensar assim. Olhe para as pessoas e tente ver a dor. Se esforçe um pouco.
Eu já estive lá e posso dizer para você que quem está perdido em delírios nem sempre está muito feliz por estar livre do mundo cheio de problemas. Não se iluda só porque a pessoa APARENTEMENTE está sorrindo. E nem sinta pena. Em vez disso, faça alguma coisa.
Tente se colocar no lugar daquele paciente psiquiátrico que delira
Se você tivesse a sensação de estar sendo observado por um zilhão de pessoas você ia entender o que eu estou dizendo. Ou se você visse as cenas mais invasivas do mundo, talvez entendesse. Ou se você não pudesse dizer quem é uma pessoa de verdade e quem é uma alucinação, quem sabe compreenderia. Eu poderia descrever outras formas de sofrimento psíquico piores, mas infelizmente são bem difíceis de colocar em palavras.
Queria deixar claro para quem desconhece a situação da doença mental que choque elétrico não é NADA comparado ao sofrimento psíquico. O que me dá raiva é que tem gente que acha que uma simples dor de dente é pior que sofrimento psíquico.
Há quem ache que uma experiência maravilhosa como o parto é a coisa mais dolorida do mundo. Não sei qual é a coisa mais dolorida do mundo, mas posso garantir que não é parto, nem dor de dente. Muito menos a dor da eletroconvulsoterapia (eletrochoque). Tanto que algumas pessoas agradecem por terem sido submetidos ao eletrochoque, que as livrou do terrível sofrimento psíquico. Daí a gente vê que tratamento de choque não doi tanto assim.
Quem fica doente mental não é fraco
Entenda uma coisa: nenhuma dor física pode ser comparada com a dor mental. Ninguém com doença mental é FRACO. Não seja infantil, não seja preconceituoso. Não pense que a pessoa apresentou doença mental por não ser capaz de enfrentar os problemas da vida. Não pense que a pessoa só queria escapar. ISSO NÃO É VERDADE. Isso é um preconceito.
Na verdade Carrano sentiu tanto o choque elétrico simplesmente porque FELIZMENTE não tinha experimentado nenhum sofrimento psíquico antes, de fato. (Eu digo FELIZMENTE porque levar um choque é bem melhor que sofrer certos sofrimentos psíquicos.) Ele não era doente mental, apesar que, depois do "tratamento" ele passou a apresentar várias complicações mentais e físicas.
É claro que devo deixar claro que há formas leves de sofrimento psíquico. Há formas leves de doença mental. Você talvez tenha experimentado uma forma leve de doença mental e por isso diga que eu estou errado. Mas o que me preocupa mais não é quem sentiu menos sofrimento psíquico que eu. O que me preocupa são aqueles que podem estar sofrendo bem além de minha imaginação, bem mais do que eu jamais poderia imaginar. Já que até onde posso ver, muitos pacientes psiquiátricos sofrem muito mais do que eu, sendo privados de uma vida, na verdade sendo privados mesmo de uma subvida.
OS CASARÕES
TÁBULA RASA - CAPÍTULO 2
No princípio havia caos e escuridão. É um tipo de renascimento. Ele está num lugar. Ele sequer sabe por que ele está lá. Ele está totalmente confuso. Nada sabe ele de sua própria descendência, ele nem sabe se está vivo ou morto. Não sabe se é homem ou mulher. Talvez ele não seja nem um, nem outro. Talvez ele seja um anjo. Ou um demônio... É um recomeço. É um tipo de renascimento, pois ele é uma tabula rasa novamente.Como as pessoas falam com ele passa a conhecer o próprio nome. Seu nome é a abertura da grande porta de seu passado... Suas memórias eram de muito tempo atrás, mas talvez nem seja tanto tempo, afinal, ele tinha pouca noção do tempo. Ele mal sabia quando era dez horas da manhã ou três da tarde. Não lhe deixavam ver o sol.
A menção de seu nome tornou as memórias mais claras. As memórias que ele tinha eram obscuras, porém a lembrança de seu nome deu-lhe uma certa identidade. Essa identidade o ligou a outras pessoas fazendo que as outras memórias fluíssem com mais facilidade.
Daí ele passava a receber lembranças mais lúcidas. De sua infância, adolescência e do início de sua vida adulta. Ele não conseguia se lembrar de coisas recentes de sua vida. Suas lembranças paravam num certo ponto e havia uma estranha pausa nas memórias.
Algumas das pessoas de branco lhe perguntaram sobre sua família. Quantos irmãos e irmãs ele tinha? “Você tem pai?” eles o estavam testando. Ele hesitou, mas respondeu todas as perguntas.Ao passo que seus parentes iam visitá-lo, suas memórias retornavam. No princípio ele mal podia falar com eles. Era cansativo, difícil. Eles lhe proporcionaram memórias, pois eles diziam: “eu sou isso! Eu sou aquilo!” “eu fiz isso! Eu fiz aquilo! ”Houve um momento em que uma das moças bonitas que trabalhavam lá começou a perguntar sobre as crises do pessoal. “Por que você está internado?” “por que você está aqui?” Os internos que estavam com ele relatavam seus casos: “eu bati na minha mãe!” “eu quebrei minha casa inteirinha!” Quando ela virou para ele e perguntou sobre seu caso ele apenas encolheu os ombros e disse: “eu não tenho a menor idéia... o que aconteceu? Por que estou aqui? ” “você não se lembra do que fez? ” Ele sinalizou que não, se perguntando, cada vez mais, o que tinha acontecido? “Quando sua família vier visitar você, pergunte a eles.”Então, ansioso, ele aguardava a visita de sua família, para que lhe contassem a história dele. A história de sua crise.
Quando a família dele veio a mesma moça bonita o lembrou de perguntar sobre a crise. Então ele perguntou. Um de seus irmãos lhe disse: “você estava muito agressivo!” A menção de “agressivo” o levou a uma outra memória: ora, a canela dele estava no curativo. Era um sinal de agressão. Agressão dele? Bem, ele podia se lembrar do momento em que ele se arremessou em algo de vidro, provavelmente, ali sua imaginação voava: vidros se estilhaçavam, mas parecia que se dissolviam em água. De repente, ele se via na praia, se afogando, talvez. Mas seu irmão foi muito conciso, breve. Ele apenas disse: “Estêvão, você estava muito agressivo.” Nada mais do que isso. Então ele poderia ter cometido qualquer tipo de agressão, qualquer tipo de violência. Isso o estava consumindo por dentro. Ele tinha que saber o que ele tinha feito. Tinha sido coisa séria? Os grilos amontoavam.
Mais tarde duas das mulheres que trabalhavam lá conversavam sobre ele. Uma das mulheres era aquela que lhe tinha perguntado sobre sua história: “então você não se lembra como veio parar aqui?” Quando ele sinalizou que não ela continuou: “você se lembra de como machucou a canela? ” “sim.” “claro!”, ela disse sorrindo, “a gente sempre se lembra de dor. Quando dói, ah! Aí não dá pra esquecer!” Elas sorriram com certa ironia. Ele retornou o sorriso. Mas ele sabia que ele não se lembrava de nenhuma dor. Porque dor física não pode ser comparada a dor psíquica. Ele não se lembrava de dor na canela, mas se lembrava da dor dentro da cabeça. A verdadeira dor.
Explicação breve do capítulo 2 de Os Casarões
O capítulo tenta deixar claro a confusão mental causada no momento que a pessoa volta do surto. E mostra como é espantosa a forma que os cuidadores dessas instituições psiquiátricas trabalham com a ideia que a pessoa, o paciente psiquiátrico, foi agressivo. E, infelizmente podemos constatar que quando esses profissionais tratam as pessoas como autores de violências as pessoas se sentem culpadas e ficam traumatizadas.
Hoje em dia está claro que a população de pacientes psiquiátricos cometem menos violência que a população que não é de pacientes psiquiátricos. Várias pesquisas já provaram isso.
O capítulo tenta mostrar também que, os profissionais de saúde mental buscam mostrar para os pacientes psiquiátricos seus ERROS e ensiná-los a viver com ar de professor. Em vez de apoiá-los e ajudá-los a superar todo o sofrimento e confusão que passaram e estão passando no momento da internação.
O capítulo também deixa claro o tipo de pergunta mecânica que esses profissionais fazem aos familiares: "Ele estava agressivo." Daí vem uma resposta já sugestionada: "Sim, muito agressivo".
E por fim, o capítulo busca mostrar o quanto aqueles que trabalham em instituições psiquiátricas muitas vezes ignoram a dor dos pacientes chegando a ironizar essa dor.
Eu fico por aqui.
PAZ E LIBERDADE