18.3.14

A morte de José David

"Embora um menino pequenino,
Venceu o leão
Com grandes passos matou o urso
Com suas próprias mãos
Então, então ele encheu, ele encheu
Ele encheu, ele encheu
Deixou bem pesado
Para o gigante ele avança
Com a pedra na mão..."

Era o segundo semestre do ano 2006. Eu olhava para as fichas das pessoas que concluíram o curso 10 da Escola de Informática e Cidadania Rubens Corrêa, EIC Rubens Corrêa. Eu tinha sido incumbido de ligar para essas pessoas para informá-las do dia da formatura. Um dos alunos tinha feito todas as reposições de aulas e tinha chegado a concluir o curso de informática e tinha direito a receber o certificado de conclusão. Mas eu não ia poder dar essa informação a esse aluno. Teria que dar a informação à mãe dele. Mas como eu ia chamar uma mãe para uma festa de formatura, quando seu filho acabara de morrer de overdose? Ele morreu sem ao menos saber que tinha tido sucesso no curso. Como eu ia arranjar coragem para falar com a mãe? Como ela reagiria? E eu me via num dilema. Liguei para o número da mãe dele uma vez. Acho que fiquei aliviado por ninguém ter atendido, pois não sei como eu ia consegui falar com ela. Depois não consegui mais arranjar coragem para ligar.

O curso 10 acabou em julho, mas a formatura demorou um pouco para acontecer, pois a técnica responsável pela escola de informática no CAPS achou que seria melhor fazer a formatura no dia da festa de despedida da diretora fundadora do CAPS; pois assim poderiam fazer uma festa só.

Dezoito pessoas concluíram o curso. Um número menor apareceu na formatura, mas foram indo embora pouco a pouco, pois ficaram irritados com a homenagem à diretora. Pouco adiantou meus apelos para que ficassem.

Das pessoas que concluíram o curso, 3 eram funcionários do CAPS, 1 era familiar de paciente do CAPS, e outras 4 eram pessoas que moravam nas redondezas. As outras 10 pessoas eram todos pacientes do CAPS, na época da formatura. Dessas 10 pessoas, uma morreu antes de poder receber o certificado. Essa pessoa é o José David. Dos 9 pacientes que puderam receber o certificado, 2 morreram pouco depois.

Cristiano foi encaminhado para atendimento ambulatorial.
Francisco passou por várias internações depois, mas até o último dia em que eu estive no CAPS, ele sempre aparecia para treinar no computador.
Lucidio morreu pouco depois.
Cléber foi ficando cada vez mais afastado da realidade. Desenvolveu diabetes.
Carlos Augusto ficou num estágio avançado de catarata. A última vez que o vi ele dizia que ia operar.
Giselle também passou por várias crises, mas a última vez que eu a vi ela continuava belíssima.
Frederico voltou para seu estado de origem, no nordeste.
Sônia faleceu algumas semanas depois de reclamar de dores com a psiquiatra; a psiquiatra disse que eram apenas gases.
Paulo César também estava bem quando o vi pela última vez.

De uma turma em que 10 pacientes psiquiátricos concluíram, um chegou a óbito antes de receber o certificado. Outros 2 morreram pouco depois. Outros 2 sobreviventes se tornavam cada vez mais crônicos, a última vez que os vi. Esses são os que tiveram SUCESSO. Nesses números dá para ver que o número de baixas de pacientes psiquiátricos são muito grandes, e que, na verdade, uma minoria consegue ficar razoavelmente bem com os psicotrópicos. Logo, os psicotrópicos, infelizmente, NÃO SÃO bem sucedidos na maioria dos casos. Além disso, o desenvolvimento de doenças nesses pacientes que passam o dia todo no CAPS revela que essas pessoas ficam ABANDONADAS nessas instituições, e sequer são devidamente examinadas lá.

- Meu nome é José "Dêivide", e não José David!
- José, no idioma português o "d" final não é pronunciado, e "a" não se pronuncia "ei". A pronúncia "Deɪvɪd" é lá nos Estados Unidos. Aqui a pronúncia é "Davi". A gente mal consegue falar "Deɪvɪd" aqui no Brasil. - Minha péssima pronúncia confirmava o que eu dizia.
- O nome da Bíblia que é Davi. - Replicava ele, meio irritado.
Eu tentava explicar para ele que na antiga versão da Bíblia "Davi" se escrevia "David", com "d" final mudo. E quando ele nasceu ainda não tinha ocorrido tal alteração na Bíblia. Apenas passaram a escrever "Davi" nas versões mais recentes. Nem adiantou eu trazer para ele amostras de uma Bíblia antiga.
- Ah, Ezequiel. Não adianta discutir com você. Você é teimoso pra caramba.

José David --assim como outros com diagnóstico de esquizofrenia no CAPS-- dizia que as vozes eram constantes:
- Esse remédio só me faz engordar. - Dizia ele.


A mãe de José David nunca mais apareceu no CAPS. Para que ela iria no CAPS, depois de seu filho cometer suicídio com a ajuda dos psicotrópicos que diziam que resolveriam todos os seus problemas? Eu nunca consegui arrumar coragem para ligar para a mãe de José David para dizer que o certificado dele estava lá. No dias da formatura, outra pessoa anunciou o nome do "formando" José David:
- ...o certificado de José David, "in memoriam"!

Até hoje eu me pergunto se agi certo em não tentar informar a mãe de José David que seu filho tinha sido bem sucedido no curso. Talvez lhe trouxesse alguma alegria pelo sucesso do filho. Mas, e se trouxesse apenas a dor da saudade? Bem, eu nunca saberei o que aconteceria.

Nota: todos os nomes são verdadeiros.

"Então, então ele encheu, ele encheu
Ele encheu, ele encheu
Deixou bem pesado
Para o gigante ele avança...
E o gigante vai ao chão!

Ih! Morreu..."

Tema musical da postagem: Voices - Davizinho (Cd - Coração de Criança - 2001)

3 comentários:

  1. Anônimo1:32 AM

    Ezequiel parece que vc gosta muito de musica.Por acaso vc conhece um rapper americano e ativista da luta antimanicomial chamado Chill E.B. ? adoro as musicas dele :) :) :)

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    1. Acabei de ver sobre este Chill E.B. Ele apoia o grupo CCHR. Obrigado pela dica. A propósito, CCHR é um grupo bem mais organizado que o Movimento da Luta Antimanicomial Brasileiro.

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  2. Anônimo2:56 PM

    também gosto muito de uma musica chamada s.s.r.i lies de outro ativista o Mike Adams. No clipe dessa musica ele indica o site do psiquiatra Peter R. Breggin :) :) :)

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